Mauricio Tambellini

Gestor do Parque Estadual da Serra de Caldas Novas (GO)

“Conseguir aliar a gestão ambiental com a comunidade local é o que garante a conservação real de uma unidade”

Maurício acredita que é preciso levar as pessoas para as áreas naturais para que elas se sintam pertencentes ao meio ambiente.

06/11/2024

O Sudeste goiano, mais precisamente entre as cidades de Rio Quente e Caldas Novas, é um dos locais mais procurados por viajantes do Brasil. Em um levantamento feito no último mês de junho, por exemplo, a região ficou entre as 5 mais procuradas em sites de busca de viagem. O que nem todas essas pessoas sabem, porém, é que o território conta com uma Unidade de Conservação super visitada: o Parque Estadual da Serra de Caldas Novas.

Com mais de 12 mil hectares, a área protegida conta com cachoeiras belíssimas, poços de águas cristalinas, trilhas, museu e visuais naturais que causam aquele deslumbramento. Mas vai além disso: o Pescam, como é carinhosamente chamado, preserva um dos principais mananciais hidrotermais da região – que formam o principal foco do turismo local, as águas quentes presentes em diversos clubes e hotéis.

Desde 2014, o paulista radicado goiano Mauricio Tambellini é gestor do Parque Estadual da Serra de Caldas Novas. Nesta conversa, ele conta não só os desafios, mas também a força que o diálogo tem no dia a dia de quem trabalha com gestão ambiental.

Confira a entrevista completa:

CONEXÃO SEMEIA – Como uma pessoa do interior paulista, formada em Agronomia, foi parar em Goiás para trabalhar em uma Unidade de Conservação?

Mauricio – Fui criado em Batatais (SP), uma região bem rural, e minha família trabalhava com agricultura. Na faculdade conheci minha esposa, a Paula. A gente se formou e queria ganhar o mundo, achando que o diploma iria abrir portas (risos). Mas estávamos com dificuldade de nos encaixar nas áreas, eu em agronomia e ela em biologia. Aí viemos para Ipameri, cidade da mãe da Paula, aqui pertinho de Caldas Novas.

Foi nessa época, em 2007, que eu descobri que o Parque existia. A  gente só tinha bicicleta e visitava muito, pra fazer trilhas e visitar as cachoeiras. Foram os primeiros contatos com o parque em si. 

CONEXÃO SEMEIA – Mas você era um agrônomo fazendo trilhas. Como começou a se interessar pelo trabalho na área ambiental?

Mauricio – Sempre fui apaixonado pela natureza. Quando era criança, no sítio da família, minha diversão era ir pras áreas florestais: tinha cachoeira, árvores, abria trilha pra chegar nas cachoeiras. Sempre tive essa paixão. Meu pai trabalhava com agricultura, mas sempre teve essa coisa da preservação, de não poder caçar, de não permitir prejuízos ao meio ambiente.

Além de ter isso em casa, pais de amigos meus faziam muitas viagens de moto e me levavam juntos. Foi assim que conheci as Unidades de Conservação. Me lembro muito do Parque da Serra da Canastra e de Ilhabela, que também é um parque estadual.

Meu refúgio sempre foi esse: ir para a natureza.

CONEXÃO SEMEIA – Voltando pra sua chegada a Goiás, em 2007. Logo que chegou já começou a trabalhar na área ambiental?

Mauricio – Trabalhei em outras coisas, até que em 2010 teve um concurso público pra Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Passei em Agronomia, trabalhando com a parte fundiária, e a Paula em Biologia. Nos mudamos para Goiânia, até que em 2014 a gente quis voltar a morar mais no interior.

Conversamos na Secretaria e existiam duas vagas: uma no Parque Estadual Serra de Caldas Novas e uma no Parque Estadual da Mata Atlântica, na cidade de Água Limpa. E assumimos os dois parques, cada um em um deles.

CONEXÃO SEMEIA – Você comentou que trabalhou na parte fundiária antes do Parque. Esse conhecimento auxiliou de alguma forma no trabalho de gestão ambiental?

Mauricio – Com certeza. Eu trabalhava com indenização de propriedades rurais, conversava muito com proprietários de terra e produtores em geral, e tinha muito sucesso: conseguia ter uma conciliação com as pessoas, mesmo que elas discordassem do processo todo.

É importante lembrar que o nosso sistema de unidades de conservação nacional é muito recente, é de 2002. Ele ainda está em processo de amadurecimento.

Desde 2010, quando comecei a trabalhar na Secretaria do Meio Ambiente, percebia que existia uma mentalidade de que a área protegida tem que ser isolada. E isso não é possível. Hoje tem um viés muito mais da gestão: eu preciso das pessoas proprietárias perto de mim para gerir o Parque Estadual da Serra de Caldas Novas.

Conseguir aliar a gestão ambiental com a comunidade local, seja do entorno, seja de dentro da unidade, é o que garante a conservação real de uma unidade. Pode ter o melhor trabalho do mundo e a melhor infraestrutura possível: se a gente não tiver essa proximidade, essa comunicação, com as pessoas do entorno, o nosso trabalho vai ser ineficiente.

E isso com usuários também. A gente teve aqui uma questão com os ciclistas, que vinham aqui pedalar escondidos. Chamamos o pessoal pra conversar e hoje existe uma parceria muito grande.

Foto: Mauricio Tambellini/Arquivo Pessoal

CONEXÃO SEMEIA – Sobre essa questão, você entende que essa também é uma função do parque? De que as pessoas se sintam parte dele, sejam elas moradoras do entorno ou visitantes?

Mauricio – 100%! Na verdade, é o que eu sempre digo: as pessoas confundem um pouco. O meio ambiente é um bem do cidadão. O território até pode ser do estado, mas a natureza, o meio ambiente, é das pessoas. A legislação traz isso.

O meio ambiente é um bem comum: é do ciclista, do transeunte, do viajante, do morador, de todo mundo. Contanto que use da maneira correta. E estamos aqui pra isso: pra garantir que seja ser usado da maneira adequada.

Esse processo começou a facilitar a nossa gestão. Antes a gente corria atrás deles, para proibir; hoje, eles vêm até a gente para dar ideias e ajudar a gestão.

CONEXÃO SEMEIA – O que você acha que é o principal para ter acontecido essa mudança?

Mauricio – Acho que é o entendimento do que é uma unidade de conservação. Eu sempre falo que o Parque Estadual da Serra de Caldas Novas está aí para isso: o meio ambiente está sendo protegido para que nós tenhamos mais qualidade de vida também.

É usar os ambientes naturais para aproximar as pessoas. Ninguém cuida do que não conhece. Se você isola aquilo da pessoa, ela não vai olhar praquilo de um jeito positivo. No momento em que ela está ali dentro, se sente parte disso, ela vai pensar “opa, isso é meu”. É preciso proteger e conservar, mas fazer isso levando as pessoas para dentro das áreas de conservação, não isolar. A gente precisa levar as pessoas para as áreas naturais. 

Hoje, por exemplo, a associação dos ciclistas faz parte do conselho do parque. Com os escaladores aconteceu a mesma coisa: antes, eles iam a áreas que não eram permitidas, eram áreas de proteção integral do parque, primitivas. Aí um dia eu falei pra eles: olha só, vocês estão aqui escondidos, e aqui dentro do Pescam tem outras regiões que podem ser até mais legais, e que podem ser permitidas. Hoje eles abriram mais de 10 vias de escaladas e passaram também a ajudar o nosso trabalho.

Isso começou a facilitar a nossa gestão, inclusive, porque todo mundo faz parte dessa gestão.  

CONEXÃO SEMEIA – Essa é uma história que ilustra muito o que você diz, em relação dos desafios da gestão em unidades de conservação. Você pode contar um pouco mais dessa história?

Mauricio – A verdade é que essas pessoas, em geral, têm uma relação muito íntima com a natureza. A gente como gestor começa a entender isso, que essas pessoas estão ali para ter um contato com o meio ambiente, aquilo é saúde para eles.

Também foi muito bom pra mim essa aproximação também. Isso começa a mostrar para o gestor que a comunidade realmente quer cuidar do parque. Eles já nos ajudaram, inclusive, como voluntários no combate a incêndios, em uma época em que não tínhamos brigada.

CONEXÃO SEMEIA – Já que você tocou no assunto, o Brasil passou por momentos muito complexos em relação a queimadas nesse ano de 2024. Qual sua visão em relação a isso, como você lida com essas questões?  

Mauricio – Aqui na unidade, antes mesmo da minha gestão, já tinha um trabalho muito bom com o entorno, com os proprietários de terra. De 2010, mais ou menos, para cá, os incêndios de grande proporção diminuíram muito.

Quando eu assumi, a gente passou a ter um trabalho ainda mais efetivo de gestão da unidade junto com os bombeiros e junto com a comunidade. E praticamente zerou a causa de incêndios que não são naturais, causadas por atividade humana.

Aí veio a coisa do conceito: eu estou numa unidade de proteção integral, não é uma unidade de uso sustentável. Aqui, tem zero propriedades com atividades internas. Quando pensamos em uma unidade de proteção integral, o fogo antrópico, de causas humanas, deixa de fazer sentido. Porque a ideia é que eu proteja a área para que isso não aconteça.

Temos que tomar cuidado com o manejo do fogo. Existem propriedades vizinhas que utilizam o manejo do fogo, especialmente em limpeza de pastagem. Aí o que a gente faz? Trabalha junto com os proprietários. Conversa e orienta a chamar a brigada de incêndio sempre que for fazer esse tipo de ação, para auxiliar a fazer na época certa e do jeito certo. Para não ter risco do fogo entrar na unidade de conservação.

Foto: Mauricio Tambellini/Arquivo Pessoal

CONEXÃO SEMEIA – E acontece isso de eles chamarem?

Maurício – Sim, eles chamam. Depois que fizemos esse trabalho de aproximação e de conversa, os casos diminuíram muito. Poucos proprietários sabem que é permitido em lei o uso do fogo, mas sempre obedecendo certas regras. E acho que a gente pode fazer esse papel de orientação. Dar treinamento também: hoje a gente tem dentro desse escopo, da brigada, a questão do treinamento e orientação para combate do fogo, entender como funciona caso vá fazer o manejo de fogo.

Dentro do Parque, o Conselho entendeu que não tem necessidade desse manejo. Tem isso: comunidade foi ouvida e trouxe essa questão, então passamos a ter essa diretriz.

A gente sabe que outras unidades de conservação têm outras realidades, e que às vezes existe a necessidade de usar o fogo para alguma ação. Aí eu acho que precisa tomar muito cuidado na relação com as comunidades. Porque tem a teoria do vidro quebrado: você passa em frente a uma casa e tem um vidro quebrado, daqui a pouco todos os vidros vão estar quebrados. Quando você começa a fazer o uso do fogo, você precisa trabalhar muito bem a comunicação com as pessoas do entorno, pra elas entenderem o que está acontecendo. Senão, você acaba estimulando as pessoas a botarem fogo em qualquer lugar.

CONEXÃO SEMEIA – Falando em meio ambiente, a região de Caldas Novas é uma cidade mais famosa pelos hotéis e clubes, certo? Como é gerir uma unidade de conservação nesse contexto?

Mauricio – Você trouxe uma questão muito interessante. Por que essa região se desenvolveu tanto turisticamente? Por causa das águas termais que têm no subterrâneo. Existe uma rede hoteleira que utiliza esse recurso e geralmente os turistas vêm para usufruir dos clubes e hotéis.

O mais interessante disso tudo é que essas águas termais só existem por causa da Serra de Caldas Novas, que é o Parque Estadual da Serra de Caldas Novas. A água da chuva que cai é a que vai a mais de 1.000 metros de profundidade, onde ela fica quente, e retorna ou a poços ou a nascentes que os clubes utilizam.

É aquela história: existe uma gestão pública do parque e existe a comunidade, o privado. Existia aquela história de que o parque era uma coisa e os clubes eram outra. Um dos desafios é mostrar que essa riqueza, essa quantidade de água termal que ele usa nas piscinas, vem do parque. E aí a pessoa fica mais um dia na cidade para conhecer o parque, que é o que tem começado a acontecer agora, tendo novos atrativos como o parque, como o rio Corumbá, que é um símbolo da região.  

CONEXÃO SEMEIA – Com essa experiência que você tem, como imagina o mundo ideal da relação das unidades de conservação e a população?

Mauricio – Importantíssima é a questão do pertencimento. Mundo ideal: as pessoas entenderem que o meio ambiente é essencial para a nossa sobrevivência como humanidade e que cada um de nós, individualmente, precisa cuidar disso.

Cada pessoa entender que cada faz parte do meio ambiente, ninguém é alheio. Quando a gente pensa em meio ambiente, a gente pensa na natureza no estado primitivo. E não: meio ambiente é tudo. É ter um pouco de cada coisa. Precisa ter área integral, precisa áreas de proteção, precisa ter áreas de cidade, mas precisa ter equilíbrio.

Entender o pertencimento e cuidar de cada situação dentro da estrutura que chamamos de meio ambiente: passamos a nos tornar pessoas que vão conseguir ter uma saúde melhor, conseguir mais paz e a ser pessoas melhores.

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