Maria Lúcia Cristo
Gestora do Parque Estadual do Itacolomi (MG)
“As pessoas da comunidade precisam saber que o parque é delas”
Maria Lúcia acredita que une três pontos-chave para ser uma boa gestora: paixão, conhecimento em legislação e olhar técnico voltado para a educação ambiental. Confira a entrevista completa!
30/03/2023
Localizado na cidade histórica de Ouro Preto, o Parque Estadual do Itacolomi é considerado um dos principais de Minas Gerais. Os motivos são muitos: fácil acesso por rodovia asfaltada, beleza cênica ímpar, repleto de cachoeiras e trilhas e muito bem estruturado (inclusive com hospedagem).
Criado em 1967 e com mais de 7,5 mil hectares, é lá que mora, desde 2017, Maria Lúcia Cristo, a gestora do Parque. Autointitulada uma “pessoa do mato”, ela decidiu abandonar a faculdade de Direito para dedicar seus conhecimentos e seu tempo para uma Unidade de Conservação.
Formada em Gestão Ambiental e com duas especializações na área – em Educação Ambiental e Sustentabilidade e em Direito Ambiental -, Lúcia acredita que une três pontos-chave para ser uma boa gestora: paixão, conhecimento em legislação e olhar técnico voltado para a educação ambiental.
Com muito bom humor, nesta entrevista para o Conexão Semeia ela conta alguns dos principais desafios do cargo – e um pouco da sua trajetória de vida, que a levou ao Parque Estadual do Itacolomi.
Confira o bate-papo que tivemos com a Maria Lúcia sobre esse e outros assuntos:
CONEXÃO SEMEIA – Você tem uma trajetória de vida que pode parecer incomum, tendo estudado Direito e depois enveredando para o lado ambiental. Como você chegou a ser gestora do Parque?
Lúcia – Bom, eu passei no concurso para o IEF (Instituto Estadual de Florestas) em 2013. Estava no sexto período de Direito e fui trabalhar com processos. Só que casei com um chileno que já era da área ambiental, e comecei a me interessar muito pelo tema. Pedi uma transferência para a Diretoria de Unidades de Conservação do IEF.
Desde o início, eu queria ir para uma unidade de conservação, mas foi um período muito bom no escritório, porque eu tive uma visão macro do que é uma unidade de conservação. Foi quando surgiu a vaga no Parque Estadual do Itacolomi. Aí eu pensei “o Itacolomi é uma unidade muito grande, muito cheia de responsabilidade”. E achei que não era o que eu queria. Mas o diretor da época dizia que eu tinha o perfil para a vaga.
Nessa época, eu estava justamente respondendo ao Ministério Público sobre o Itacolomi. E pensei “nossa, esse parque é maravilhoso!”. Aí conversei com a família, porque era uma mudança, sair de Belo Horizonte e vir para Ouro Preto. Acabei vindo pra cá em novembro de 2017.
CONEXÃO SEMEIA – Para além do trabalho, como é sua relação com o meio ambiente de maneira geral?
Lúcia – Sou totalmente rural. Para ser gestora de unidade de conservação e morar dentro da unidade, que é o meu caso, tem que ter esse perfil. Gosto muito de vida simples e de silêncio, de estar no meio da natureza e meu marido também. Eu não vou a Ouro Preto, só quando tem reunião ou algum compromisso assim.
CONEXÃO SEMEIA – Pelo que dá para entender, sua vida estava indo para um lado e passar em um concurso meio que levou você para outro caminho. É mais ou menos isso?
Lúcia – É exatamente isso. Comecei a gostar muito de Direito quando comecei a estudar para concurso. E a minha carreira no meio ambiente não começou jovenzinha. Primeiro casei, tive meus filhos e abri mão de estudar. Depois, foi quando os meus três filhos se formaram na faculdade que eu comecei a voltar pra mim.
Passei em vários concursos, vários. Uma das coisas que eu não gostei do Direito: eu passei no concurso do Tribunal de Justiça. Então, eu ia trabalhar no Fórum. Só que eu detestei o trabalho! Era um trabalho de carimbar os processos que os advogados traziam, às vezes 200 páginas, e despachar para o juiz. E… era isso! Eu sou uma pessoa que não gosta de rotina. Pensei que se eu ficasse nisso por 30 anos, iria morrer de tédio! (risos)
CONEXÃO SEMEIA – E, para você que diz gostar da vida ao ar livre, ainda fechada entre quatro paredes, né?!
Lúcia – Totalmente assim. Nessa época comecei a repensar o Direito. Quando passei no concurso do IEF, aconteceu uma coincidência: tinha passado em outro concurso para o Tribunal de Justiça. Fiquei com os dois concursos nas mãos: vou pra esse TJ que vai ser sofrido ou vou tentar uma coisa completamente diferente na minha vida?
Como sou de me aventurar, vim para o IEF ver o que ia dar. (risos)
CONEXÃO SEMEIA – Você falou que não gosta de rotina. Como gestora de parque, como é sua rotina?
Lúcia – Tenho 28 funcionários, o que já é uma demanda bem puxada. O que que eu fiz quando cheguei aqui? Sou de delegar, então dei uma coordenação para cada monitor: um cuida de frota, outro cuida de hospedagem, outra cuida do pessoal e assim por diante. Isso me tira muito de funções do dia a dia, como fazer ofício e tal.
Por isso que não gosto de ser chamada de gerente, falo que sou gestora; porque gerente é aquela pessoa que é chamada para resolver problemas. E acho que a gestora é quem faz esse intercâmbio, essas articulações: eu converso com o prefeito, tenho uma cadeira no Conselho Municipal de Turismo etc.
CONEXÃO SEMEIA – Mesmo com as dores de cabeça, a sensação é de que você tem prazer no que faz. É por aí?
Lúcia – É por aí, sim. Adoro conflitos! Porque o conflito te move. Você pensar em estratégias para resolver ajuda demais no dia a dia.
CONEXÃO SEMEIA – Você disse que gosta de conflitos, de desafios. Quais você enxerga que são seus principais desafios no dia a dia como gestora?
Lúcia – Quando cheguei aqui, um dos principais desafios foi a equipe. Levei um ano e meio para formar uma equipe. Por quê? Sou funcionária pública e funcionária pública mesmo: acho que a gente tem que ter ética e tentar sempre fazer as coisas certas.
Mas, quando cheguei, encontrei uma cultura diferente, que era a do funcionário público que não faz nada. Comecei a perceber um tanto de erro e comecei a trabalhar do jeito que eu achava certo. Não vou agradar a todo mundo, mas vou executar meu trabalho: estou aqui em uma missão e vou cumprir minha missão.
Demorei um ano e meio para formar a equipe. Ver depois os frutos disso é muito bom. Hoje você vê que o Parque Estadual do Itacolomi é super elogiado, temos uma ótima avaliação em sites e isso me move.
Outro grande desafio foi que no mesmo dia da minha nomeação saiu uma portaria de cobrança de ingresso – que já existia, mas os gestores passados não cobravam. Tive uma rejeição da comunidade muito grande, porque eles achavam que eu era a culpada. Mas tudo isso foi sendo vencido.
CONEXÃO SEMEIA – Qual você acha que deve ser a relação entre uma unidade de conservação e a população? O que a unidade tem a entregar para a população e vice-versa?
Lúcia – Acho que tem que ser uma relação que mostra que nós não estamos aqui para atrapalhar, mas para ajudar. A ideia para esse ano é capacitar a comunidade: artesanato, culinária, o que for possível.
E a educação ambiental é fundamental, especialmente com as crianças.
CONEXÃO SEMEIA – E a comunidade entende isso, essa participação do quanto o parque é benéfico, inclusive em relação à educação, que você citou?
Lúcia – O que acontece: a comunidade que deveria estar aqui, do entorno, não vem ao Parque. Só quando fazemos o canal com escolas e a escola traz aqui. Mas quem vem ao parque é outro público, inclusive gente que vem entrar por entrada clandestina.
Mas essa comunidade, que eu acho que deveria vir e a gente deve abrir as portas pra ela, não vem. Às vezes a gente tem que ir até eles e buscar. Temos um projeto com a polícia ambiental e ela traz muitas escolas aqui. Acho que é importante trabalhar essas pessoas que não têm oportunidade, de estarem em um ambiente de lazer, de ir a uma cachoeira. Esse é o público que eu gostaria de estar trabalhando, e não só as pessoas que têm condições de vir.
CONEXÃO SEMEIA – Como fazer para esse público compreender esse papel de que o parque é delas também?
Lúcia – Não é simples. Quando eu cheguei aqui e coincidentemente tinha uma portaria de cobrança, eu chamei grupos, como os ciclistas, que eram os mais insatisfeitos, para conversar. Expliquei a situação, inclusive que tinha uma possibilidade na portaria das pessoas fazerem um projeto, se tornarem voluntárias e terem a gratuidade. Mas teve uma parcela que não quis.
Meio que querem ter o bônus, mas não querem ter o ônus. Acho que essa insatisfação de um pequeno grupo sempre vai existir e temos que lidar com isso.
CONEXÃO SEMEIA – Recentemente o Parque Estadual do Itacolomi passou por um processo de concessão. Como você vê essa parceria?
Lúcia – Sou super a favor da concessão. O uso público do Parque é mais ou menos 5% do terreno, o restante é área preservada de Cerrado e Mata Atlântica. Mas a parte de uso público absorve toda a mão de obra da equipe. A área preservada do Parque do Itacolomi é muito grande, ele é fornecedor hídrico para Ouro Preto e Mariana, tem várias nascentes no Parque.
Só que a gente fica tão no dia a dia do atendimento às pessoas que a atividade final do órgão, que é educação ambiental, preservação, estar nas escolas, na comunidade, a gente não consegue fazer. Acho que vamos ser muito desonerados com a concessão.
Vamos ficar realmente por conta do meio ambiente, eu já estou alucinada de empolgação com os trabalhos que vou ter que fazer. Vai ter um tempo ainda para a concessão se instalar de fato, mas já comecei a me preparar, a preparar psicologicamente a equipe.
Vamos estar onde nunca estivemos, vamos ficar no mato, vamos ter mais tempo pra cuidar da atividade finalística do órgão.
CONEXÃO SEMEIA – Você falou da atividade final de unidades de conservação. Quais você acha que têm que ser os papéis delas no Brasil?
Lúcia – Acho que a parceria vai ajudar a chegar perto do que acredito que seja o ideal. Vamos estar na comunidade e aí vamos trabalhar a conscientização. Não adianta só falar, a pessoa precisa ver do que estamos falando. Tendo pessoas assim na comunidade, isso vai reverberar pra muito mais gente.
É trazer as pessoas da comunidade aqui para dentro do Parque, mostrar a nascente que leva água para a casa dela. Aumentar o nível de pertencimento das pessoas, de uma forma que elas não se sintam discriminadas. Têm pessoas que acham que o parque está distante da comunidade, que é um lugar para pessoas de fora. Elas têm que saber que o parque é delas, e entender a importância dele.
Para mim uma unidade de conservação tem um papel fundamental, que é fazer esse trabalho de valorização dentro do real, mostrar que elas estão dentro de uma unidade como essa. Isso não é apenas um parque, isso aqui é uma unidade de conservação. Que é uma coisa muito maior.
Esse trabalho é o ideal: conscientizar as pessoas e colocá-las como coparticipantes desse processo.
CONEXÃO SEMEIA – O que você está dizendo é como se o Parque estivesse sendo menos visitado por quem mais importa, que são as pessoas do entorno?
Lúcia – Exatamente. Um dia uma pessoa entrou aqui por uma entrada que não é a portaria. Falei que ela tinha que entrar pela portaria. Ela disse “esse parque é nosso, eu preservo, eu recolho lixo”. Aí falei que a gente estava reformando a capela e precisando de voluntário, chamei pra vir pintar a capela com a gente (risos). Quis explicar pra ela que a gente tem muito problema aqui, que não é só catar o lixo.
Tem gente que passa aqui toda semana e nunca viu nosso centro de visitantes, não conhece a história do parque. Mas eles falam que aqui é nosso quintal. Mas quintal tem que varrer, tem que limpar, tem que cuidar, tem que se ajudar.
As pessoas certas para uma unidade de conservação são a comunidade. Quero trazer a comunidade para ficar um dia no parque, fazer um piquenique. Dar a oportunidade de um lazer que talvez para elas está muito distante da realidade. Não precisa viajar para longe: pode ir no parque da sua região, da sua comunidade, e viver momentos que um estrangeiro gostaria de viver.
É preciso dar essa importância para as pessoas daqui, de que estão em um parque que é tido como um dos melhores de Minas Gerais.
CONEXÃO SEMEIA – Para finalizar, você pode deixar um recado aos seus pares, as pessoas que trabalham na gestão de outras unidades de conservação?
Lúcia – O principal para trabalhar em uma unidade de conservação é gostar, ter paixão pelo que faz. Isso que move. Você tem que gostar, tem que estar satisfeito. Você não pode estar numa unidade de conservação porque pediram para ir ou porque te lotaram aí. Não dá certo. Você tem que ter paixão, tem que ter entusiasmo. Meu recado para os meus pares: avalie bem se você está no lugar certo. Porque se você tiver, não tem erro: você não vai trabalhar nenhum dia. Eu não trabalho nenhum dia (risos).