Kelly Cottens

Gestora do Parque Nacional de Jericoacoara (CE)

"Me sinto privilegiada na área da ciência da conservação: é uma das áreas em que a mulher tem voz"

Servidora do ICMBio desde 2009, Kelly já atuou em UCs como Reservas Extrativas e Áreas de Proteção Ambiental e, em 2021, assumiu a chefia do Parque Nacional de Jericoacoara. Nesta entrevista, ela comenta a relação do parque com a comunidade, a recente concessão e o desafio de ser mulher em um cargo de gestão.

07/03/2024

Quase 9 mil hectares, mais de 1 milhão de visitantes por ano e uma das mais conhecidas unidades de conservação do país. Este é o Parque Nacional de Jericoacoara, paraíso cearense de vasto litoral e belezas naturais conhecidas e reconhecidas praticamente no mundo inteiro.

No início de 2024, o local passou por um processo de parceria, com objetivos bastante claros com foco em valorizar a sustentabilidade ambiental e a visitação – que são fundamentais para a conservação.

Nesta edição do Conexão Semeia, trazemos uma conversa com Kelly Cottens. Atual gestora do Parque e com uma relação profissional com o ICMBio que vem desde 2009, ela apresenta sua visão sobre esta parceria, além de contar um pouco sobre a relação com a comunidade, as vivências profissionais e o desafio de ser mulher em um cargo de gestão.

Confira a entrevista completa:

CONEXÃO SEMEIA – Você é analista ambiental concursada do ICMBio, mas é do Sul do Brasil. Como você chegou ao Parque Nacional de Jericoacoara, no Nordeste brasileiro?

Kelly – Fiz o primeiro concurso só do ICMBio mesmo, em 2009. Somos quase 230 servidores dessa leva, todos analistas ambientais. Entrou gente do Brasil inteiro, e todas as vagas foram para a Amazônia Legal. Entrei no estado do Pará, fui lotada no Salgado Paraense, em Bragança (hoje Núcleo de Gestão Integrada Salgado Paraense).

Na minha vida acadêmica, sempre trabalhei com manguezal, então aproveitei para escolher um local que ainda tivesse praia, parte litorânea. Fiquei 3 anos como analista na Reserva Extrativista Marinha de Araí Peroba. Tinha um servidor lá, que era meu chefe, mas ele saiu e depois fiquei sozinha.

Mas eu era bem mais nova, minha família toda estava no Sul e eu tinha vontade de voltar para lá. Acabei indo pra Brasília, que é um pouco mais perto de casa (risos), fiquei 2 anos na Coordenação Geral de Proteção. Depois fui pro Sul, na APA de Guaraqueçaba. Uma APA muito grande se falando em áreas de Mata Atlântica, com 250 mil hectares. Fiquei 7 anos lá.

CONEXÃO SEMEIA – E de lá foi para o Parque de Jericoacoara?

Kelly – Ainda não. Fui convidada para assumir uma unidade no estado de Sergipe, a Reserva Biológica de Santa Isabel, que tem 90% dos nascimentos de tartarugas marinhas do Brasil. Trabalhei lá muito feliz, gostava muito da unidade. Em 2019 aconteceu aquele problema dos óleos nas praias brasileiras, e eu fui catapultada para essa missão. Percorri o Brasil todo, foi um tempo muito difícil e um trabalho muito impactante na minha carreira.

Em seguida, logo que eu voltei pra Rebio, a gente viveu a covid. As unidades de conservação foram fechadas e eu acabei voltando pro Paraná durante o trabalho remoto. E nesse momento pedi pra sair da chefia, porque queria ficar com a minha família. Aí acabei assumindo a NGI Rio Paraná, um lugar lindo no Oeste do estado.

Só que aí nesse meio tempo eu queria voltar a trabalhar na praia. Fui a Brasília e falei que queria voltar para o litoral. Aí recebi o convite de assumir o Parque Nacional de Jericoacoara, em 2021.

CONEXÃO SEMEIA – A gente tem a percepção de que muita gente visita Jericoacoara, mas nem todo mundo sabe que é um parque nacional. Qual a sua percepção sobre isso?

Kelly – Pela minha vivência, completando 15 anos de ICMBio, percebo que as unidades de conservação são pouco conhecidas pelas pessoas em geral, não é uma questão só do Parque Nacional de Jericoacoara.

Dito isso, tem grandes parques nacionais com visitação expressiva, como o Parque Nacional da Tijuca. As pessoas vão ao Cristo Redentor, mas talvez não tenham a clareza de estar visitando uma Unidade de Conservação. Acho que é uma questão de comunicação e talvez a gente ainda demore um tempo pra vencer isso.

Jericoacoara tem uma característica especial que suscita dúvidas na cabeça do visitante, que é a ocupação. O litoral, em geral, é densamente povoado, e aqui é duna e praia deserta até chegar na vila, que é uma área urbana pequena. Ali suscita: por que ninguém construiu um resort aqui? Essa é a função do Parque Nacional, conservar pelo menos amostras da paisagem original. Isso pelo menos suscita que existe um regime especial de uso, isso é interessante. 

Servidores do ICMBio marcando ninhos de tartaruga na praia da Pedra Furada | Foto: Luis Alberto Miranda de Carvalho/ICMBio

CONEXÃO SEMEIA – Você disse que é uma questão de comunicação. O que você acha que muda com as pessoas tendo mais clareza do que é e para que serve uma Unidade de Conservação?

Kelly – Acho que facilitaria aquela coisa do pertencimento: se eu conhecer melhor, vou achar que pertenço àquela estratégia de conservação.

As unidades de conservação têm um papel econômico e social muito importante. Quem não tem aquela memória afetiva, pode criar na vida adulta de entender qual é o papel das UC’s. Parque lembra diversão, lazer – aí já começa essa relação melhor.

Na rotina pesada do dia a dia, as pessoas podem ter um entretenimento, no ramo de serviços, do que as unidades de conservação podem trazer. A pessoa volta para a realidade continuando com esse apego e esse relacionamento com a UC.

Vira objeto de desejo estar num parque, e até as redes sociais podem mostrar isso: você posta uma foto curtindo a praia de Jericoacoara e a pessoa sabe que você estava num parque natural. Cria-se um carinho, um cuidado. E vincula com o motivo maior com o trabalho da gente, que é a conservação. A pessoa quer ver igual ou melhor, sempre, ela não quer ver lixo, não quer ver sujeira, quer ver que está sempre bem cuidado.   

CONEXÃO SEMEIA – Essa relação das pessoas com parques naturais sempre aparece. O Parque Nacional de Jericoacoara foi parte fundamental na ideia da Cartilha Parques Naturais e Parcerias. Pode falar um pouco a respeito?

Kelly – Sou bióloga, como grande parte das pessoas que trabalha em parques. E quanto mais vai se avançando na implementação das unidades de conservação, vamos nos deparando com problemas que não eram possíveis de se prever antes.

O desafio é se comunicar com todo mundo. Passamos aqui por momentos em que tínhamos todas as respostas, falávamos e ninguém entendia. Para vencer esse desafio, que não é fácil nem de reconhecer, nem de solucionar, pedimos apoio ao Semeia.

A gente precisava contar a mesma história para pessoas que não são da área, com a produção de materiais acessíveis – e a Cartilha é isso, é essa porta de entrada.

CONEXÃO SEMEIA – Recentemente o Parque Nacional de Jericoacoara passou pelo processo de parceria. O que você, enquanto gestora, espera dela?

Kelly – Aqui em Jeri, temos uma situação bem única. O projeto atual é a terceira iniciativa como essa que acontece aqui. Tivemos projetos muito mirabolantes, mas era outra realidade, com 300 mil visitantes ao ano. Esses 2 projetos anteriores nunca chegaram à fase de edital, mas foram aprendizados importantíssimos.

A consulta pública estava sempre presente, mas nunca foi adiante quando a gente tentava comunicar com o público. A segunda foi muito educativa para o ICMBio: na audiência pública tomamos uma lição muito séria de como não fazer uma parceria, que foi barrada pela população. Para nós, do ICMBio, parecia certa, mas quando chegou na audiência pública, na realidade das pessoas de Jeri, o projeto foi rejeitado de forma contundente.

Nesta terceira, trouxemos toda essa bagagem. Em 2011, o plano de manejo já indicava que a visitação ia crescer muito, devido à nova rodovia e ao aeroporto. Foi feito um projeto de desenvolvimento turístico da região, que se concretizou em 2017, quando passou a marca de 1 milhão de visitantes/ano. A partir daí, você impõe sobre os servidores um desafio extraordinário.

Esse 1 milhão exige que você tenha uma estrutura mínima. O que a parceria vai trazer: colocar no parque tudo que não tem, e que precisamos.

Kelly acredita que é possível proporcionar mais oportunidades de contato com o parque para os visitantes | Foto: Luis Alberto Miranda de Carvalho/ICMBio

CONEXÃO SEMEIA – A expectativa, então, é até de uma mudança no tipo de visitantes?

Kelly – O Parque Nacional de Jericoacoara, ao contrário de outros, não tem estrutura como banheiro, áreas de apoio, informações turísticas, centro de visitantes, há áreas do parque remotas que não têm energia, esgoto. Acredito que a partir do momento em que a gente traga isso, vai ter uma valorização maior do parque e um turismo sem tanta pressa, como vemos hoje.

Vamos proporcionar mais oportunidades de que o turista passe mais tempo aqui. Um público mais explorador, mais curioso. Uma oportunidade de observar o que tem dentro do parque sem estar só de passagem.

O tipo de turismo que pensamos que vai começar a existir é o de observação de aves, de travessia a pé ou de bicicleta. Travessias, por exemplo, é perigoso até de estimular, porque pode ter impactos negativos ao meio ambiente. A partir do momento em que esteja sinalizado e proponha outros modais de transporte, podemos estimular a travessia. Mergulho nas lagoas, velejar, são muitas oportunidades.

É importante a população reconhecer a riqueza natural que existe dentro de um Parque Nacional. É claro que o turismo sol e praia tem uma importância majestosa, é um dos que mais atrai visitantes. Mas por trás dele tem muitas outras oportunidades.  

A ideia é ter um Parque de diversões naturais.

CONEXÃO SEMEIA – Acha que o caminho vai ser esse?

Kelly – Temos uma noção clara de que estamos só começando. Estamos com expectativa muito positiva de resolver muitos problemas, mas também vemos que vai ser muito desafiador.

Pessoas que estão interessadas em mudar a realidade, em tornar a realidade presente mais positiva e fazer um futuro mais confiável, mais sustentável. A sustentabilidade ambiental que tanto se fala desde a década de 70, acho que a equipe que trabalhou aqui, inclusive o Semeia, quer mesmo imprimir uma realidade de desenvolvimento turístico em áreas naturais diferente.

A gente está comprometido em não deixar se repetir em Jericoacoara histórias que não foram muito bem-sucedidas em outros lugares.

CONEXÃO SEMEIA – Você e a equipe do ICMBio têm participado ativamente deste processo de parceria público-privada do Parque Nacional de Jericoacora, certo? Como é esse seu papel na relação com a comunidade local?

Kelly – Pelo histórico dessa temática específica de parceria, já não era novidade. As pessoas já estavam cansadas de muitas promessas e nada acontecia. Meu papel atual de relação com a comunidade é a sinceridade.

Ter passado em outros lugares do ICMBio é decisivo, conheço bem o funcionamento da instituição. Participei da construção da lógica de gestão, aprendi e contribuí na prática com esse modelo de se desenvolver.

As pessoas vêm na nossa sede, conversam e acredito que a relação com a comunidade se cristalizou. Sugestões que têm futuro, a gente encaminha e o que não faz sentido, a gente também dá o retorno. Quando alguma resposta é não, não sou eu que dou o não. É o Parque que não foi criado para isso, foi criado para outros propósitos.

CONEXÃO SEMEIA – E as pessoas entendem isso?

Kelly – Aqui temos a Árvore da Preguiça. 2 mil pessoas querem subir nela por dia. Não existe o “sou só eu”. E a gente tem que fazer essa fiscalização do comportamento das pessoas, o que não é fácil nem simples. A gente faz isso para sustentar a espécie humana. Se todas as outras espécies se acabassem, a gente não sobreviveria.

Muitas vezes a gente fica com o papel de chato, mas na verdade o sentido não é se distanciar da comunidade, não é criar uma briga ou se opor à diversão. É que para todo mundo ter a mesma oportunidade de se divertir e tomar banho de mar em uma água limpa, precisa ter esse controle.

Importante lembrar que o parque está aqui para dar casa a quem não é humano. As corujas não têm voz, por exemplo, e precisam ser protegidas. Você não pode andar de carro em lugares pra tirar uma foto bonita, porque lá é a casa de algum animal: temos que dar voz a quem não fala, e que tem direito de estar ali. As unidades de conservação falam por eles.

Gestora do Parque Nacional de Jericoacoara desde 2021, Kelly Cottens esteve presente nos diálogos com a comunidade para a construção do projeto de parceria | Foto: arquivo pessoal

CONEXÃO SEMEIA – Falando nisso, quais são os principais desafios na sua gestão? Ser mulher torna as coisas diferentes?

Kelly – Nas três Unidades de Conservação em que fui chefe, fui a primeira mulher. Em Santa Isabel, a procuradora pública me disse que achou que ia se aposentar sem ver isso acontecer. Quando ela falou isso pra mim, deu pra mim um peso ainda maior nos meus resultados.

Quando uma mulher erra, ela é muito mais cobrada. Tenho uma sorte muito grande que no ICMBio a gente não tem esse problema. O corpo de servidores tem bastante presença de mulheres, quatro diretoras muito experientes e muito seguras, isso traz uma tranquilidade para se trabalhar.

Imagina chegar numa sala em que tem 7 homens e você é a única mulher. Mas quando eu fecho os olhos e vejo quem está atrás de mim, me sinto confiante. Porque não estou sozinha, tem outras mulheres comigo. Como mulher, posso parecer estar sozinha. Mas tenho muita gente comigo e não estou sozinha. Temos uma ministra, exemplo de como as mulheres podem se destacar e ocupar o espaço.

Me sinto privilegiada na área da ciência da conservação: é uma das poucas áreas em que a mulher tem muita voz.

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