Felipe Cruz Mendonça
Gestor do Parque Nacional do Itatiaia (RJ)
“Não precisamos ensinar a árvore a ser árvore: gestor ambiental é gestor da relação pessoa-natureza”
Felipe acredita que as Unidades de Conservação precisam fazer sentido para as comunidades do entorno e que a gestão socioambiental deve conciliar a conservação e os seres humanos. Confira a entrevista completa!
16/06/2023
Simplesmente o primeiro Parque Nacional do Brasil e referência histórica no país quando o assunto são Unidades de Conservação. Este é o Itatiaia, localizado no coração da Serra da Mantiqueira – ali, na divisa entre os estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.
Com mais de 28 mil hectares, o Parque Nacional do Itatiaia foi criado em 1937 e conta com uma infinidade de atrativos como trilhas, montanhas, uma biodiversidade extremamente rica e o quinto ponto mais alto do Brasil: o Pico das Agulhas Negras, com 2.791m.
É dentro do Parque que mora Felipe Cruz Mendonça, gestor da UC desde junho de 2023. A chegada dele ao Itatiaia pode ser considerada uma volta para casa – afinal, ele é nascido em Volta Redonda-RJ, a pouco mais de 100km de distância.
Geógrafo de fala calma, Felipe passou parte dos últimos 20 anos como gestor de Unidades de Conservação: 4 anos na Reserva Extrativista Arapixi-AC e outros 4 anos no Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha-PE.
Nesta conversa com o Conexão Semeia, ele conta um pouco sobre essa carreira, que começou meio por acaso, mas que hoje não consegue se ver longe dela.
Confira o bate-papo completo:
CONEXÃO SEMEIA – Você é formado em Geografia, nasceu em Volta Redonda e, por conta do trabalho, morou no Acre e em Fernando de Noronha. Como começou esse caminho até chegar ao Parque Nacional do Itatiaia?
Felipe – Passei minha infância entre Volta Redonda e São José dos Campos. Estava me preparando para o vestibular, e sempre olhei para a Geografia como um tema que me instigava muito desde o ensino médio. Ao mesmo tempo, quando você escolhe fazer Geografia, o horizonte de que vai ser professor está sempre ali. Acho uma carreira muito bonita, mas com seus desafios não muito reconhecidos.
Sempre com essa insegurança em relação ao futuro, mesmo adorando o tema. Aí, pouco antes de formar, surgiu esse concurso do Ibama.
CONEXÃO SEMEIA – E isso foi quando?
Felipe – Isso que estou contando foi em 2002. Eu estava no último ano de Geografia, e fiz a prova muito instigado pelo meu pai. Tinha lido o edital, mas não tinha me animado muito. Mas meu pai, né?! Ele me instigou e eu fiz. E aí acabou que passei na terceira chamada. O que foi ótimo, porque se fosse na primeira chamada eu não tinha nem diploma ainda (risos).
Foi o primeiro concurso do Ibama na época, com uma chamada nacional e tal. E foi isso: era vaga de analista ambiental e fui para a gerência executiva do Ibama no Acre, em Rio Branco.
CONEXÃO SEMEIA – E como foi o processo de decisão, quando você ficou sabendo que a vaga era em um local tão longe da sua casa?
Felipe – Quando surgiu a oportunidade, não pensei duas vezes. Era a hora de ir mesmo: recém-formado, sem muitos compromissos, foi a hora certa. Quando passei, eu dava aula de Geografia em São José dos Campos. E eu não estava feliz dando aula, essa é a verdade.
Hoje eu até dou aula para servidores, mas fui gostando dessa ideia de lecionar com o tempo, de condução de oficinas, um papel meio de educador. Fui tomar gosto pelos processos formativos, educativos, depois que entrei no Ibama.
CONEXÃO SEMEIA – Conte um pouco sobre essa experiência que você viveu no Acre, por favor.
Felipe – Foram 8 anos de Acre. Sou apaixonado pelo Acre, pela Amazônia como um todo, tenho muito carinho por toda essa região. Trabalhei em muitas unidades por ali, entre Acre, Rondônia e Amazonas, em diversos processos de planos de manejo, unidades de conservação.
Foi aí que trabalhei na criação da Reserva Extrativista Arapixi, na divisa Acre-Amazonas. Trabalhei na criação e fui o primeiro gestor lá, entre 2006 e 2010. Sempre reconheço como minha primeira experiência conduzindo uma unidade de perto, à frente, como a minha sala de aula.
As pessoas da região são muito referência na minha vida: seringueiros, ribeirinhos foram muito importantes na minha formação profissional.
CONEXÃO SEMEIA – E foi amor à primeira vista esse trabalho como gestor?
Felipe – Foi na porrada (risos). Nada te forma para ser gestor. Você não tem uma formação acadêmica que dê conta do que vai enfrentar em campo na gestão. É tanta coisa que você trabalha, gestão de conflitos, gestão de pessoas, administração, logística… Em geral, somos poucos na gestão desse espaço, naquela época menos ainda.
Muita coisa você aprende “na tora”, como se diz. As necessidades vão acontecendo e você vai enfrentando, com os apoios possíveis da instituição.
CONEXÃO SEMEIA – Para além do trabalho, como era e como é a sua relação com Unidades de Conservação e com o meio ambiente de maneira geral?
Felipe – Na verdade, eu não tinha uma relação próxima com a temática meio ambiente. Minha formação em Geografia não foi muito próxima desse tema. A Geografia te especializa em generalidades, brincando com o termo, um olhar amplo sobre muitos aspectos como geologia, geomorfologia, biologia, questões sociais e econômicas. Mas traz um olhar de planejamento territorial muito amplo, o que torna muito válida essa formação para gestor de UC.
Por isso brinco que o Ibama me escolheu. Fiz o concurso sem acreditar muito que eu poderia passar. Passei e fui me aprofundando pelo tema e pela questão socioambiental.
CONEXÃO SEMEIA – Então foi no Acre que você se apaixonou pelo meio ambiente?
Felipe – Sim, no Acre. E com um olhar muito humanista, socioambiental. Sempre fui mais ligado às Humanas do que às Exatas. Me interessa muito a perspectiva da conciliação entre a conservação e as pessoas. Como equilibrar isso? É o tal do uso sustentável.
CONEXÃO SEMEIA – Então a gente devolve a pergunta: como equilibrar o uso público e o meio ambiente?
Felipe – Há 20 anos faço essa pergunta. Não é uma resposta fácil. Quando se fala de uso público, no ICMBio, a gente pensa muito na perspectiva da visitação.
Acho que é necessário, é o papel dos parques nacionais, que eles sejam esse espaço da sociedade. A conciliação do uso sustentável é fundamental, as comunidades tradicionais podem auxiliar nesse processo de estabelecer uma relação mais harmônica nesta construção.
Muitas vezes a gente pode estabelecer uma UC fragilizando comunidades, fragilizando e colocando em situação de vulnerabilidade socioambiental em nome da conservação ambiental.
Veja bem: a conservação é muito, muito importante, é fundamental. Mas não pode ser ferramenta para injustiças. O que eu quero dizer? Em nome de algo muito nobre, que é a conservação, não se pode vulnerabilizar comunidades, “desterritorializar” comunidades. Acredito que a gente possa trabalhar juntos. Evidente que algumas situações podem envolver deslocamento, regularização fundiária das unidades e tal, mas é preciso ter essa preocupação com as pessoas.
Não se pode inviabilizar a vida das pessoas nessas áreas, e precisamos estar atentos a isso: que a conservação ambiental não seja instrumento de injustiça ambiental.
CONEXÃO SEMEIA – O que você está dizendo é que a conservação tem que ir além de conservar a fauna e flora, seria isso?
Felipe – É preciso trabalhar em conjunto com essas comunidades do entorno. É muito normal ver parques que em seus limites ficaram comunidades inteiras, como pequenos agricultores e populações tradicionais.
Antes, essas populações eram retiradas do local. No entanto, o entendimento do órgão gestor do ICMBio vem mudando, cada vez mais entendendo essa necessidade de se trabalhar juntos. Existem diversas leis no arcabouço legal brasileiro que garantem a defesa desses territórios para essas populações.
Acho importante que, nos últimos anos, o ICMBio vem mudando esse olhar, tentando conciliar o olhar da conservação com as populações residentes.
CONEXÃO SEMEIA – Este você acha que é um dos principais desafios na sua gestão no Parque Nacional do Itatiaia?
Felipe – Um desafio muito evidente na gestão de Unidades de Conservação é essa relação com a comunidade, que acaba sendo uma gestão de conflito. Fazer com que a Unidade tenha sentido para o seu entorno, para a sua comunidade, esse é um grande desafio.
Precisa ter um olhar amplo para isso, precisa entender o papel indutor e multiplicador da Unidade de Conservação na comunidade. Não pode criar uma unidade como um parque achando que é uma reserva biológica, que só pode ter pesquisa. Não quer dizer que reserva não é importante, é claro que elas são importantes – mas esse é o desafio.
Para que a pessoa defenda uma reserva biológica no quintal dela, é preciso entender a importância de ela estar ali. E isso nem sempre é simples. A favor da conservação ambiental todo mundo é, mas no quintal dos outros. Quando traz limitações para a vida das pessoas, eu entendo perfeitamente os questionamentos colocados.
A gente, que está na gestão, assim como o órgão gestor, precisa ser sensível a isso. Olhar para esse olhar contrário e entender por que a pessoa não quer e mediar isso: qual o melhor limite, a melhor relação, esse é um grande desafio.
CONEXÃO SEMEIA – E para além disso, quais os outros desafios?
Felipe – Outro desafio é a gestão de pessoas. Gestão de conflito, relação com a comunidade e, pensando mais internamente, gestão de pessoas da equipe. Muitas vezes nós, servidores do ICMBio e gestores de UC, não estamos preparados para isso. São os componentes administrativo do negócio. Essa questão administrativa é um gargalo: se não funcionar bem, tem problemas. Sentia muito isso quando era gestor em Noronha, por exemplo.
É uma área muito importante e não pode ser negligenciada.
CONEXÃO SEMEIA – De que forma você vê as Unidades de Conservação contribuindo para a sociedade?
Felipe – Outro desafio é responder a essa pergunta (risos). De que forma a UC está contribuindo para a conservação do território? Estamos conseguindo monitorar esses ganhos em conservação, da relação da unidade e seu entorno? Estamos conservando o que a UC foi criada para conservar?
A tal da importância da pesquisa e do monitoramento ambiental. A pesquisa voltada para a gestão é um gargalo. Nessas UCs precisamos de uma gestão que traga mais. A qualidade da água melhorou? O zoneamento é a melhor estratégia de manejo daquela área? Ou poderia se abrir um espaço de visitação sem comprometer os ambientes que estão protegidos?
Por exemplo, em Noronha. Estavam querendo iluminar o aeroporto. Seriam vários pontos de iluminação no Morro do Pico, que é um cartão postal e ninho de aves marinhas. Solicitamos um levantamento voltado para esse termo: podemos autorizar ou não?
O resultado foi que poderia ter iluminação, mas que os voos noturnos só poderiam ser para emergências médicas e a iluminação só seria ligada durante a aterrisagem e a decolagem, para trazer o menor impacto possível. Isso que eu chamo de pesquisa voltado para gestão.
CONEXÃO SEMEIA – Qual você acha que deve ser a relação ideal dos parques e UCs com a população?
Felipe – Primeiro: as Unidades de Conservação precisam antes de tudo fazer sentido para a comunidade do entorno. Eles são os primeiros beneficiários, ela precisa fazer sentido para o município, para as comunidades locais. Elas têm essa obrigação de dar esse retorno para a sociedade local.
Quando o estado brasileiro cria uma Unidade de Conservação, é ele que define quem vai acessar e quem não vai acessar aquele recurso ambiental. É uma área criada para recreação e para pesquisa, não para agricultura ou pecuária. E o Estado media um conflito de acesso aos recursos.
Entendo muito que uma UC é criada por causa de um ecossistema, da beleza cênica, das espécies ameaçadas. Mas todas essas causas são aspectos da biodiversidade que estão em disputa na sociedade, incluindo aí o turista, o madeireiro, o visitante, o indígena, o minerador. Vários olhares para um mesmo recurso: o Estado cria e media o conflito. Nunca é simples: fazer gestão de UC é todo dia fazer gestão de conflito. A gente está sempre em gestão de conflito ambiental.
Gestão ambiental é isso. A gente não precisa ensinar a onça a ser onça, a queda d’água a dar água, a árvore a ser árvore: gestor ambiental é gestor de interesses, gestão pessoas e natureza. É por isso que me apaixonei.
CONEXÃO SEMEIA – Falando do Parque Nacional do Itatiaia, o que fez com que você aceitasse a gestão desta unidade?
Felipe – Primeiro que é uma honra trabalhar no primeiro Parque Nacional do Brasil. Segundo que é uma volta um pouco mais perto da família.
Estava há 4 anos em Brasília, trabalhando com planos de manejo. E estar em uma Unidade de Conservação é muito legal para mim, gosto muito do trabalho em campo. Aqui tem uma equipe muito bacana, uma unidade muito implementada, muita coisa se desenvolvendo.
É um desafio profissional muito rico, que me desafia nessa perspectiva da gestão de pessoas, gestão do território como um todo. O Parque Nacional do Itatiaia está funcionando muito bem e é importante não deixar a peteca cair.
Que parque queremos? Como integrar as comunidades, como integrar à gestão? Que seja realmente um espaço público de conservação, conscientização e de todos, da sociedade como um todo. Isso me motiva. Com promoções de entrada, atrativos que permitam que todas as camadas sociais possam ter essa oportunidade de frequentar seus parques.
CONEXÃO SEMEIA – Para finalizar, você pode dar um recado aos seus pares, aos gestores de Unidades de Conservação?
Felipe – Falei bastante nessa conversa. E tudo o que falei não são receitas prontas. É preciso ter muita sensibilidade com quem faz gestão de Unidade de Conservação, porque não é fácil. A gente não consegue ser bom em tudo que a gente precisa ter.
Ter sensibilidade, saber ouvir e respeitar o histórico de gestão da unidade, respeito às comunidades residentes, respeito às pessoas que aqui estão. É preciso observar mais, ouvir mais do que necessariamente fazer – reflete muito o momento que eu estou, momento de observar, de ouvir.
Mas também sei que o tempo da gestão não permite só essa coisa romântica do ouvir. É preciso tomar decisões, com papel de liderança. Mas a decisão precisa ser cuidadosa e buscar mais na equipe as respostas, mais do que na sua maletinha de gestor. E perseverança.